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Comida de verdade na boca do povo

05/04/2024

Alimentação ‘adequada e saudável’ pressupõe garantia de acesso permanente e regular a alimentos produzidos de forma socialmente justa, ambientalmente sustentável e livres de contaminantes físicos, químicos e biológicos.
No último bimestre de 2023, dois eventos, o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA) e a 6º Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), colocaram em pauta a relação entre a qualidade do que se come e a forma como esses alimentos são produzidos. O primeiro reuniu cerca de 5,5 mil inscritos no Rio de Janeiro, entre 20 e 23 de novembro; e o segundo, 2 mil pessoas em Brasília, entre 11 e 14 de dezembro. Os temas escolhidos para os dois encontros não poderiam ser mais claros e coincidentes: ‘Agroecologia na boca do povo’ e ‘Erradicar a fome e garantir direitos com comida de verdade, democracia e equidade’, respectivamente.
Comida de verdade, como definido pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), é a que promove alimentação adequada e saudável. Desde 2007, quando ocorreu a 3º CNSAN, consolidou-se a formulação de que isso “pressupõe a garantia ao acesso permanente e regular a alimentos produzidos de forma socialmente justa, ambientalmente sustentável e livres de contaminantes físicos, químicos e biológicos e de organismos geneticamente modificados”. Trata-se de um conceito que dialoga diretamente com a pauta da agroecologia e que, no curto espaço de tempo entre os dois eventos, sofreu uma derrota importante com a aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei 1.459/2022, conhecido como ‘PL do Veneno’, que flexibiliza o uso dessas substâncias. “Todas as pessoas devem ter acesso à alimentação adequada e saudável, que esteja condizente tanto com a etapa biológica de sua vida quanto com a sua cultura e seus hábitos, e que esses alimentos precisam ser cultivados e comercializados considerando a sustentabilidade econômica social e ambiental”, defende a presidente do Consea, Elisabetta Recine.

A Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), organizadora do 12º CBA, define o termo como uma “ciência, movimento político e prática social” que “articula diferentes áreas do conhecimento” para “desenvolver sistemas agroalimentares sustentáveis em todas as suas dimensões”. “As ações propositivas que são apresentadas pela agroecologia trazem a crítica ao modelo dos sistemas alimentares, inseridos no que eu chamo de lógica neoextrativista, detentor de um poder avassalador. Contra isso, propomos uma transição agroecológica e outras formas de economia solidária que contemplem os princípios da saúde. A soberania alimentar e nutricional depende de políticas de educação que estejam integradas com políticas de saúde, que por sua vez precisam de políticas de proteção ambiental. Sem essa integração, as políticas públicas não conseguirão fazer transformações que são improrrogáveis e incontornáveis, diante de uma realidade de crise ecológica”, afirma o pesquisador Alexandre Pessoa, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

No Dicionário de Agroecologia e Educação, publicado em parceria pela EPSJV/Fiocruz e a Editora Expressão Popular em 2021 e disponível em acesso livre no portal da instituição, as autoras do verbete Agroecologia, Dominique Guhur e Nívia Regina da Silva explicam que ela vem sendo “reafirmada por um conjunto de sujeitos sociais, organizações, instituições de pesquisa e ensino como uma ciência, um enfoque ou disciplina científica, como prática (social) e como movimento ou luta política. Pode apresentar uma abordagem restrita, como um campo de cultivo agrícola; considerar um agroecossistema mais complexo, como uma unidade de produção (estabelecimento rural, assentamento de reforma agrária) ou mesmo uma região; abarcar todo o sistema agroalimentar; ou convidar a repensar o metabolismo sociedade-natureza, como parte de um projeto societário”.

Foi para a promoção desse tipo de agricultura que, no 12º CBA o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, anunciou que em março deste ano será relançada a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), que tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento sustentável e ao mesmo tempo melhorar a qualidade de vida da população com a oferta e o consumo de alimentos saudáveis. Lançada em 2012 e premiada pela Organização das Ações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) por seu ineditismo, a PNAPO foi inviabilizada entre 2019 e 2022 com a extinção da Comissão e da Câmara de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO). “Precisamos fazer uma mudança agroecológica. O meio ambiente está reclamando forte, precisamos nos preparar para uma transição da agricultura. Por isso temos que ter outra cultura, orgânica. Estamos retomando o apoio às iniciativas de promoção da transição agroecológica, dos sistemas agroalimentares sustentáveis e o fortalecimento de redes de produção orgânica”, afirmou Teixeira, durante o congresso.

 

Um clima hostil?

De fato, em nome do lucro imediato, e na contramão da agroecologia, o modelo do agronegócio tem aumentado também os riscos para a disponibilidade de alimentos para as futuras gerações ao contribuir para o empobrecimento e erosão dos solos, o consumo abusivo de água, contaminação de lençóis freáticos e a emissão de gases que geram o aquecimento da atmosfera. Em outubro de 2023, o Observatório do Clima divulgou o relatório ‘Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa dos Sistemas Alimentares no Brasil’, que estimou que a produção de comida responde por 74% das emissões brutas de gases-estufa do país. Desse percentual, mais de três quartos (78%) das emissões é gerada apenas pela cadeia da carne bovina. Quando divulgou o estudo, o Observatório divulgou nota afirmando que “se fosse um país, o bife brasileiro seria o sétimo maior emissor do planeta, à frente do Japão”. Pouco mais de um mês depois, estudo divulgado pelo
MapBiomas mostrou que a abertura de novas áreas de pasto foi responsável pela perda de 84 milhões de hectares de vegetação natural no território que se estende da Amazônia às nascentes de seus principais rios entre 1985 e 2022.

As consequências, aliás, não são apenas para as futuras gerações. Em 7 de dezembro de 2023, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) divulgou sua projeção para a safra 2023/24 com a previsão de 312,3 milhões de toneladas, 2,4% abaixo da obtida na safra 2022/23, de 319,97 milhões de toneladas. De acordo com a Conab, a justificativa para a queda está na baixa ocorrência de chuvas e nas altas temperaturas registradas no Centro-Oeste, em paralelo ao excesso de precipitações no Sul. Tais fenômenos, que tendem a se agravar ao longo deste ano com o fortalecimento do atual ciclo do El Niño, afetaram o desenvolvimento de culturas como a soja e o trigo, impactando também o resultado do próprio agronegócio. Há reflexos em outras culturas, como algodão e café, e na pecuária o gado – seja de corte ou de leite – que estão com a produtividade reduzida diante da exposição ao calor e da queda de qualidade dos pastos.

Quem mais sofre com esses fenômenos, no entanto, são os pequenos produtores da Agricultura Familiar. O estudo ‘Mudanças Climáticas e Agricultura no Brasil: Impactos Econômicos Regionais e por Cultivo Familiar e Patronal’, de Tarik Tanure, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de 2020, serviu de subsídio para acordo de cooperação entre o Observatório do Clima e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) ao ter estimado a perda de produtividade de diferentes culturas no Brasil a partir dos cenários de aquecimento global estimados pelo Painel Intergovernamental Sobre Mudança do Clima (IPCC). “Os cultivos de mandioca, milho e feijão, típicos da agricultura familiar, seriam impactados com perda de produtividade”, afirma Tanure, no estudo.

Ainda de acordo com a pesquisa de Tanure, o impacto das mudanças climáticas na agricultura familiar deve agravar as desigualdades e deteriorar as condições de segurança alimentar no Brasil – segundo o Anuário da Agricultura Familiar de 2023, produzido pela Contag em colaboração com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a agricultura familiar brasileira é a oitava maior produtora de alimentos do mundo.

 

A comida e a saúde

Em 2019, ao elencar seus dez principais desafios globais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu a crise climática – o organismo estima que as mudanças climáticas causem 250 mil mortes por ano, entre 2030 e 2050, devido à “desnutrição” e “diarreia”, além de estresse por calor e malária. Outro item, as Doenças Crônicas Não Transmissíveis, como diabetes, câncer e doenças cardiovasculares, que são responsáveis por cerca de 70% de todas as mortes no mundo, é apresentado pela OMS como decorrente de cinco fatores de risco, que incluem “dietas pouco saudáveis” ao lado de uso do tabaco, inatividade física, uso nocivo do álcool e poluição do ar.

A subalimentação crônica, nível mais extremo de insegurança alimentar, atingiu 4,7% dos brasileiros entre 2020 e 2022, cerca de 10 milhões de pessoas, segundo o relatório global ‘Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo’, divulgado em julho pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Também com foco no Brasil, em julho de 2023 uma parceria entre Fiocruz, Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Instituto Nacional de Câncer (Inca) divulgou o documento ‘Por uma política tributária nacional justa, que combata a fome e garanta alimentação adequada, saudável e sustentável’. O texto afirma que o sistema alimentar atual prioriza a produção e o consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil. “Os alimentos ultraprocessados estão mais baratos pela sua matéria-prima de baixo custo, sendo seus principais insumos a soja e o milho. A baixa perecibilidade e a distribuição massiva em todo o território também corroboram os preços reduzidos. As terras agricultáveis brasileiras têm como prioridade a produção de commodities (soja, milho e cana-de-açúcar), e há incentivo para exportação e menor oferta no mercado interno de produtos básicos como arroz, feijão, carne, vegetais e frutas; seus preços sobem, e caem compra e consumo. A crise climática diminui a produção de alimentos, o que faz crescer os preços, reduzindo o acesso para pessoas em situação de insegurança alimentar. O excesso de peso reduzirá a expectativa de vida em cerca de 3,3 anos e resultará em uma redução de 5% do PIB do Brasil nos próximos 30 anos”, alerta o texto.

Por sua vez, o estudo ‘Diferenças no consumo alimentar da população brasileira por raça/cor da pele em 2017–2018’, elaborado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP e divulgado em 2022, aponta que nos dez anos compreendidos entre 2008 e 2018, o consumo de ultraprocessados aumentou 5,5% no Brasil, e que tais alimentos eram responsáveis por 20% das calorias consumidas pelos brasileiros. Em maio de 2023, o trabalho ‘Mortes prematuras atribuíveis ao consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil’, liderado pelo pesquisador do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (Obha) da Fiocruz, Eduardo Nilson, em colaboração com pesquisadores do mesmo Nupens, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidad de Santiago de Chile, atestou que mais de 10% dos óbitos de pessoas entre 30 e 69 anos de idade no Brasil em 2019, 57 mil falecimentos, foram decorrentes do consumo de alimentos ultraprocessados. No mesmo estudo, os pesquisadores afirmam que reduções de 10% a 50% no consumo desses alimentos poderiam reduzir de 5,9 mil a 29,3 mil óbitos a cada ano.

Segundo a presidente do Consea, a grande bandeira da segurança alimentar e nutricional é a garantia de uma alimentação adequada e saudável para todas as pessoas, sem exceção. “Isso quer dizer que essa alimentação é um elemento protetor e promotor da saúde. Do ponto de vista mais abrangente, a alimentação adequada e saudável não trata apenas da questão biológica, da composição adequada de nutrientes que aquela pessoa necessita, a depender de sua idade ou de seu estado fisiológico. Estamos falando de dimensões que estão relacionadas com o bem viver das pessoas, no sentido de cultura, hábitos, modos de consumo e de suas memórias. Vai além do bem estar físico, é a tradução da identidade da pessoa mas também dela enquanto ser social e coletivo”, atesta Recine.

Repensar a comida, de sua produção ao consumo, portanto, é uma necessidade. Diante deste imperativo, em dezembro de 2023 a Fiocruz publicou o relatório ‘Na cozinha, não há só comida’, sobre segurança e soberania alimentar e nutricional nas experiências de cozinhas solidárias da Argentina, Colômbia, Uruguai e Brasil. O relatório consolida os debates promovidos durante o Seminário ‘Cozinhas Solidárias: subsídios para a experiência brasileira, diálogos sul-americanos’, realizado na Fiocruz Brasília em outubro com a participação de convidados de Colômbia, Uruguai e Argentina; da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN) do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), além de membros da Cozinha Solidária do Sol Nascente do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e dos movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e dos Pequenos Agricultores (MPA). “A Fiocruz colocar a questão do alimento no centro do debate é fundamental para ampliar o nosso conceito de saúde. O nosso ponto de partida é a ecologia, a compreensão de que esta dissociação entre humanidade e natureza é a origem de um profundo problema de alienação. Por esta separação, na qual a natureza – a partir de uma visão predatória – é reduzida a recursos, gera-se uma forma de organizar a sociedade cuja consequência é a profunda crise em todos os biomas e ecossistemas”, explica Alexandre Pessoa.

A presidente o Consea ressalta que a relação da Saúde com a segurança alimentar e nutricional historicamente compõe a agenda do Conselho, constando das concepções do Guia Alimentar para a população brasileira e da identificação dos ingredientes dos alimentos. “Foi no Consea que nasceu a recomendação para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária iniciar o processo de atualização da rotulagem nutricional de alimentos que anos depois gerou a resolução da rotulagem frontal”. Recine cita ainda a defesa da ampliação e qualificação das ações de nutrição na Atenção Primária à Saúde e da taxação de bebidas açucaradas, do controle de publicidade e também da comercialização de alimentos nocivos à saúde, como os ultraprocessados, em ambientes escolares. “Há uma articulação muito profunda e histórica entre as duas agendas, da Saúde e da Segurança Alimentar e Nutricional”, aponta Recine.

 

Rota biológica de produção

Em sua fala no 12º CBA, o ministro do Desenvolvimento Agrário também convocou instituições públicas de pesquisa como a Embrapa e o Finep a somarem esforços para o Brasil transitar de uma produção agrícola baseada em síntese química para processos biológicos de produção. Isso, por si só, não resultaria nas transformações demandadas pelos movimentos agroecológicos.

Pesquisadora da Embrapa Agrobiologia, Cristhiane Amâncio estuda a mudança da matriz de insumos para a produção agropecuária, apostando na agricultura de base biológica como aquela que buscar substituir insumos de base química, especialmente fertilizantes e agrotóxicos, por produtos de base biológica, como micro-organismos e insetos, na otimização do processo de fertilização. “É importante deixar claro que essa agricultura de base biológica, como abordada pelo governo federal e pelas entidades ligadas à agricultura, não necessariamente significa uma agricultura de base ecológica ou agroecologia”, ressalta.

De acordo com a pesquisadora, é necessário que as políticas públicas intersetoriais direcionem o investimento de organismos de pesquisa pública, como é o caso da própria Embrapa e também o da Finep, na busca por soluções agrobiológicas voltadas aos pequenos produtores. “Nos últimos dez anos houve baixo investimento em ciência e tecnologia para essas áreas. Os investimentos ficaram muito associados à iniciativa privada, que busca desenvolver produtos para colocar no mercado de forma rentável, a agricultura de commodities. Portanto, é muito importante termos políticas públicas e fomento à geração de conhecimento, ao manejo de ciência e tecnologia voltado para a agricultura familiar, em paralelo a todo um trabalho de formação, de extensão, de valorização dos produtos que são cultivados com esses princípios”, defende.

Como exemplo do uso da agrobiologia pelo agronegócio, ela cita a utilização de bactérias que fixam o nitrogênio, como estratégia para suprir a carência desse elemento em solos tropicais, para viabilizar a adaptação de culturas de clima tropical com alta produtividade, e as de clima temperado com resultados relevantes, como é o exemplo da soja. “No Brasil, ela não seria viável se fosse necessário usar o nitrogênio fertilizante sintético”. O benefício da rota biológica de produção, nas palavras da pesquisadora, está “no menor uso de agrotóxicos e de fertilizantes sintéticos”, diz.

Por fim, Cristhiane ressalta o trabalho desenvolvido pela Embrapa para disponibilizar processos agrobiológicos que permitam maior interação ecológica entre plantas com afinidade agronômica e o ambiente natural em si, “associado também ao ambiente antropizado [transformado pela ação humana], seja em áreas comunitárias ou urbanas. Qualquer tamanho de propriedade, e o pequeno produtor, pode fazer uso dos conhecimentos associados a isso”, afirma.

 

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